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No Estadão: O enterro precoce do CNJ

* Por Gisela Gondin Ramos

Há pouco mais de três anos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a competência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para instaurar processos administrativos e investigar juízes é concorrente à das corregedorias dos tribunais. Trocando em miúdos, o CNJ manteve o poder de passar a magistratura a limpo, quando necessário, sem ficar refém dos tribunais que tem de fiscalizar. Trata-se de algo que, sempre bom frisar, é uma de suas mais importantes atribuições.
Conselheira Gisela. Foto: CNJ


Na ocasião, a então corregedora nacional de Justiça bradava que, caso a decisão do Supremo fosse diferente, o CNJ se transformaria em um “leão sem dentes”. Ao menos a figura de um leão, mesmo sem mostrar os dentes, é capaz de inspirar respeito. Já o que se pretende fazer com o Conselho, hoje, é algo sem precedentes. Estão em pleno curso, sem velas ou coroas de flores, os preparativos para o cortejo fúnebre do CNJ.

Não é a primeira vez – e custo a crer que seja a última – que o Conselho está sob ataque. Em seus breves 10 anos de vida, o CNJ já enfrentou toda espécie de resistência. Antes mesmo de sua instalação, em 2005, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) questionou no STF a existência do Conselho. Em abril daquele ano, a Corte Suprema decidiu que a criação do CNJ foi legítima e que é constitucional seu papel de órgão administrativo máximo do Poder Judiciário brasileiro.

Anos depois, a mesma a AMB tentou cassar a competência investigativa do CNJ. Em vão, mais uma vez, graças ao bom senso e à independência do Supremo Tribunal Federal. Poderíamos imaginar, então, que as ameaças ao bom trabalho do Conselho terminariam por ali. Ledo engano.

Se for aprovada como está a proposta da nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), o CNJ se transformará em uma repartição burocrática de pouca utilidade para o País. A pretexto de zelar pela autonomia administrativa dos tribunais – que, como bem mostra a história nacional, poucas vezes serviu ao bom funcionamento da Justiça – a proposta acaba com o Conselho Nacional de Justiça.

O que as entidades da magistratura não conseguiram fazer pela via judicial, porque não tiveram suas ações acolhidas pelo STF, está sendo feito, agora, por meio de portarias editadas pelo presidente do Conselho, e chegará ao ápice com a aprovação na nova Loman. E o ápice é o fim do CNJ, pois a ideia de fundo das ações é suprimir da sociedade a possibilidade de controlar a atuação da magistratura e cobrar dela a necessária prestação de contas acerca do trabalho desenvolvido.

Muitos podem dizer que essa seria uma leitura exagerada do texto da nova Loman e das ações da Presidência do CNJ. Então, vamos ao projeto. Em seu artigo 92, inciso IV, o texto fixa como prerrogativa de juízes e desembargadores “não ser interrogado em processo disciplinar ou criminal, a não ser por magistrado de instância igual ou superior, ainda que integrante ou designado pelo Conselho Nacional de Justiça”. Ora, seis dos 15 membros do CNJ não são magistrados. Outros são juízes de primeira instância. Quem tomaria depoimento, por exemplo, de um desembargador investigado por corrupção? Um colega seu. Se isso não é um privilégio indevido, será difícil nomear o que seja.

Há mais. A proposta impede o CNJ de “criar novas atribuições por meio de atos internos do Plenário ou de quaisquer de seus órgãos fracionários”. Na prática, por exemplo, o Conselho não poderá mais tomar a iniciativa de propor ações como as semanas de conciliação ou os mutirões carcerários. Metas de julgamento, então, nem pensar, já que o artigo 273, § 5º, do projeto, é bem claro ao afirmar que “as metas e demais determinações aos tribunais” só poderão ser estabelecidas “após a oitiva dos seus respectivos presidentes”. O § 2º, do mesmo artigo, de outro lado, impede claramente o CNJ de expedir “normas abstratas”, conceito no qual se insere, por exemplo, a resolução sobre nepotismo, festejada pela sociedade brasileira em outubro de 2005, quando foi editada.

Os pontos destacados são apenas amostras de uma proposta que parece feita sob medida para esvaziar o Conselho. Por se tratar de um anteprojeto em discussão, as medidas ainda não estão em vigor. Mas, enquanto não vigoram, o CNJ está sendo enquadrado por meio de portarias.

Sem qualquer discussão prévia com o Plenário, o presidente do órgão criou dois conselhos consultivos para assessorar sua gestão. Um é formado por presidentes de associações de classe da magistratura. Outro por integrantes do chamado “Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça”, entidade de caráter privado, que não integra a estrutura judiciária brasileira.

Com justificativas bastante subjetivas, como “a necessidade de defesa das garantias e direitos dos magistrados” e a “necessidade de estabelecer rotina de atenção prévia no trato de assuntos de interesse direto da magistratura nacional”, na prática, e com o devido respeito, o presidente trouxe para dentro de sua gestão o lobby direto dos juízes, que poderão fazer pressão para pautar e tirar de pauta os temas que lhes interessam.

E a história – novamente ela – está recheada de exemplos de que a pauta corporativa dos juízes nem sempre é a pauta da sociedade. Para que não haja dúvidas: as portarias permitem que os líderes de entidades de classes de juízes, portadores legítimos das bandeiras corporativistas de sua classe, ditem a pauta do órgão de controle dos juízes. Salta aos olhos a incoerência. E é sempre bom lembrar: O CNJ é do Brasil, não dos seus juízes.

A sua principal missão é trabalhar pelo aperfeiçoamento da prestação da justiça, para que o Judiciário se torne transparente e que suas decisões sejam tomadas em tempo hábil. O papel vem sendo cumprido com excelência, na medida do possível, pelas composições dos últimos dez anos. Mas todo o trabalho está prestes a ser jogado fora.

Repito: estão em pleno curso os preparativos do cortejo fúnebre do CNJ. A bem da verdade, o cortejo já saiu. Cabe a nós, inspirados pela Páscoa que acabamos de celebrar, agir acreditando no milagre da ressurreição para impedir o enterro deste importante órgão da República.

*Gisela Gondin Ramos, conselheira do Conselho Nacional de Justiça indicada pela OAB Fonte: Estadão/Blog de Fausto MacedoFoto: CNJ