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Sobre o (des)cabimento da importação do "plea bargaining" para o sistema penal brasileiro

Por Isabela Câmara
Iniciativa do novo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o pacote de alterações legislativas proposto traz, já pelo apelido que lhe deram, inúmeros questionamentos a enfrentar, embora a contragosto do Poder Político, por quantos sejam comprometidos com o debate sério, afastandose da retórica popularesca, tão em voga, que empobrece o diálogo sobre a construção de um sistema penal “eficiente”.
A lógica do governo, que encontra eco em vários setores da sociedade, engendra uma reforma do sistema punitivo, sob os pilares do liberalismo econômico smithiano, mas que não se sustenta na contemporaneidade, como sistema puro.
A eficiência da política de segurança, com redução da criminalidade, jamais será alcançada por formulações ilusionistas, reduzidas a mera estatística, sob a falaciosa premissa de uma inversa correlação entre decréscimo da violência e aumento da população carcerária.
A importação desarrazoada de institutos estrangeiros, sem ajuste à nossa realidade, pelos complexos fatores que levam à escalada da violência urbana, a exemplo da figura do “acordo de não persecução”, não posa como solução efetiva ou mesmo necessária.
Diversos são os problemas, seja por ofensa a princípios consagrados, a exemplo da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal pública, inclusive por prever a celebração do acordo de não persecução, mesmo após o recebimento da denúncia, seja por entraves procedimentais, pelo que implicam de ofensa a garantias constitucionais do cidadão.
Certo que temperamentos já foram incorporados ao nosso sistema, com a implantação dos Juizados Especiais Criminais, da transação penal e da suspensão condicional do processo, mas sem sacrifício da liberdade, pois direcionados a uma política de desencarceramento, em face de menor potencial ofensivo, também sem maior dano ao cidadão, apenas em jogo a restrição a direitos.
Tem-se um entrave conceitual, com grave repercussão à legitimidade do acordo, pois, segundo nossa tradição civilista, negócios jurídicos são firmados livremente, por partes iguais, que estabelecem os limites e a extensão do pacto.
O "acordo" de não persecução, ao revés, opõe, de um lado, o Estado persecutor, pela figura do Ministério Público, com prerrogativas e poderes, inclusive o de produzir, unilateralmente, elementos de convicção e, de outro, o cidadão acusado, cuja opção é a de submissão ao acordo pré-definido pelo Parquet, no bojo do qual, por exemplo, poderá indicar bens e direitos que entenda sejam de origem ilícita, sem qualquer contraditório, mesmo estando em poder de terceiros, sem respeitar o princípio da pessoalidade da sanção penal; também a imposição de medida restritiva que o Ministério Público entenda como necessária e suficiente à reprovação do suposto delito.
A formalização do “acordo" depende, de início, da confissão do acusado, o que, considerando seus efetivos destinatários e os mecanismos de controle da segurança pública, deveria ser indicativo de que as confissões são livremente obtidas, refletem a verdade dos fatos. A realidade, contudo, é outra. Para além do mau aparelhamento das polícias investigativa e ostensiva, a realidade aponta é para um déficit de qualificação e aprimoramento dos integrantes dessas corporações, com elevado grau de desconfiança na eficácia de sua atuação, nos termos da legalidade estrita.
É grave que não se traga ao debate a série de objeções dos diversos atores jurídicos estadunidenses, ao sistema de “plea barganing”, que giram justamente sobre a legitimidade, por ausência de paridade entre os convenentes, e a falta de transparência da acusação na apresentação das provas, o que dificulta ao acusado a formação de um adequado juízo de conveniência para a aceitação do “acordo”. 
Enfrenta-se também a questão delicada da "voluntariedade" como requisito essencial do negócio jurídico processual, seja na declaração de culpa, seja na aceitação do pacto. Isso porque a cultura de encarceramento, bem em voga, e o condicionamento da liberdade provisória ao pagamento de vultosa fiança, também drenam o exercício livre da vontade e induzem, por vezes, o inocente à aceitação de responsabilidade além da dúvida razoável, exonerando a acusação do ônus de prová-lo.
Outro problema, agora de técnica-legislativa, diz respeito à efetividade, quando em cotejo com o nosso sistema. Isso porque propõe-se o acordo de não persecução para crimes praticados sem violência ou grave ameaça, apenados, em abstrato, com pena máxima inferior a quatro anos de reclusão, conforme redação para o caput do art. 28-A do CPP.
Além de englobar todos os delitos de competência dos Juizados Especiais Criminais, já sujeitos aos institutos desencarceradores, o projeto alcança o que, mesmo não classificados como de menor potencial ofensivo, sujeitam-se aos termos do art. 89 da Lei 9.099/95. Qual o alcance real, então, deste acordo, se, para a maioria destes crimes, já é possível, sem assunção de responsabilidade penal, sem a produção de efeitos decorrentes de uma condenação, celebrar transação penal ou aceitar proposta de suspensão condicional do processo?
A incongruência é um resultado possível de extrair do projeto irrefletido, marcado pelo açodamento e sem um debate transparente entre TODOS os atores responsáveis pela promoção da justiça e da comunidade acadêmica. Como se a solução para o grave problema da segurança pública fluísse, como mágica, do bico de uma caneta.